“Em acidentes aéreos, raramente há um culpado. Quase sempre há uma engrenagem de fatores visíveis e ocultos que colapsa.”
Toda vez que um acidente aéreo ocorre, o senso comum alimentado por manchetes e análises superficiais busca imediatamente um rosto, um nome, um responsável único para a tragédia. É o piloto? É o mecânico? É o controlador? É a empresa? É o fabricante?
Mas a aviação, essa engenharia complexa de pessoas, máquinas e sistemas, raramente entrega respostas tão simplistas. Acidentes aéreos são, quase sempre, derrotas sistêmicas. Não são apenas falhas operacionais pontuais, mas colapsos de múltiplos níveis de defesa que deveriam ter impedido o desfecho fatal.
O Modelo do Queijo Suíço: Um velho conhecido, ainda atual
James Reason, em sua clássica metáfora do “Queijo Suíço”, nos lembra que os sistemas de segurança são compostos por várias camadas de defesa. Cada camada possui suas falhas potenciais (os famosos “buracos”). Quando, por uma combinação nefasta de circunstâncias, esses buracos se alinham, o resultado é o acidente.
Na prática, o que vemos nos acidentes são falhas latentes que convivem no sistema por meses, anos ou décadas:
- Treinamentos incompletos ou mal conduzidos;
- Procedimentos que não evoluem com a complexidade operacional;
- Pressões econômicas que corroem a margem de segurança;
- Supervisões frágeis ou complacentes;
- Culturas organizacionais que toleram o desvio gradual.
E quando a sequência final de eventos ocorre normalmente com um “último elo” humano no cockpit, na manutenção ou no controle o desfecho ganha rosto, mas não explica a real extensão do fracasso.
Quando o erro individual é apenas o sintoma
A investigação técnica existe exatamente para isso: descobrir as raízes sistêmicas, não apenas os sintomas visíveis. O trabalho dos investigadores muitas vezes subestimado é o último ato de responsabilidade institucional depois de uma tragédia. No silêncio dos destroços, eles não buscam culpados, mas entendimentos.
Não apontam dedos, mas revelam vulnerabilidades. Não criminalizam o fator humano, mas iluminam o que o sistema tolerou. O maior risco para a segurança de voo não está na falibilidade humana ela é inerente. O perigo mora na normalização da vulnerabilidade, no conforto com a não-conformidade.
A cultura de aprendizado é o antídoto
Se há um único legado a ser extraído de cada tragédia, ele está na capacidade das organizações, reguladores e profissionais da aviação de transformarem dor em aprendizado e aprendizado em mudança concreta.
- Implementar o Safety Management System (SMS) de forma real e não apenas documental;
- Fortalecer a Just Culture para que erros honestos possam ser relatados sem o medo da guilhotina judicial;
- Blindar a técnica contra os apetites políticos e econômicos que, volta e meia, tentam flexibilizar o inegociável.
Conclusão:
Todo acidente aéreo não nasce de um ato isolado, mas do colapso de múltiplas defesas que falharam em série. Ele expõe o que o sistema preferiu ignorar, o que a rotina naturalizou e o que o conformismo institucional aceitou. No final, não são apenas vidas perdidas, mas sinais de alerta que o próprio sistema deixou de escutar.
A investigação, portanto, não deve ser o tribunal da tragédia, mas o laboratório da prevenção. É nesse ponto que reside a verdadeira responsabilidade: não apenas em identificar quem errou, mas em revelar por que o erro foi possível e o que precisa ser corrigido para que o ciclo não se repita.
Na aviação, a busca não é por culpados. É por entendimento. E sobretudo, por evolução.